França em choque: a morte em direto de um streamer expõe a crueldade sem filtro das redes

O quarto improvisado em estúdio, na pequena localidade de Contes, perto de Nice, transformou-se em palco de um espetáculo macabro que manteve milhares de pessoas ligadas a um ecrã durante quase duas semanas. Foi ali que Raphaël Graven, 46 anos, ex-militar e influenciador conhecido na internet como Jean Pormanove, perdeu a vida diante de uma audiência que acompanhava tudo em direto na plataforma Kick.

Foram 289 horas consecutivas de transmissão que misturaram insultos, humilhações e agressões físicas — e que terminaram com a imagem do streamer inerte, enquanto os outros participantes tentavam acordá-lo, sem sucesso.

O caso, já apelidado pela imprensa francesa de “morte em direto”, está a provocar comoção nacional, não apenas pela brutalidade dos vídeos, mas pela passividade de uma plataforma que, durante meses, deu palco a maus-tratos públicos transformados em entretenimento.


Um “espetáculo” de violência travestido de conteúdo digital

Com mais de 582 mil seguidores no TikTok, Pormanove tinha conquistado notoriedade ao aceitar o papel de vítima num formato grotesco: deixava-se insultar, esbofetear, alvejar com balas de paintball, tudo diante das câmaras e de um público que consumia as imagens como se fossem reality show.

Do outro lado estavam dois jovens influenciadores: Owen Cenazandotti (26 anos), conhecido como “Naruto”, e Safine Hamadi (23 anos), “Safine”. Eram eles os agressores habituais, que disputavam entre si a criatividade dos ataques, enquanto os espectadores assistiam em direto e comentavam em tempo real.

Um terceiro participante, identificado como “Coudoux”, também surgia por vezes como alvo das mesmas agressões. Mas foi Pormanove quem, na maioria das vezes, suportou os papéis mais violentos.


A noite em que tudo terminou

Na noite de segunda-feira, a transmissão ganhou contornos irreversíveis. Depois de dias sucessivos de maus-tratos e cansaço acumulado, Pormanove acabou por adormecer diante das câmaras. Nunca mais acordou.

As imagens mostram um dos participantes a abaná-lo, na tentativa de o reanimar. Diante da inércia do corpo, a transmissão foi finalmente desligada. O que já era um espetáculo de violência gratuita transformou-se em tragédia irreversível.

A Procuradoria de Nice abriu investigação para determinar as causas exatas da morte e ordenou a realização de autópsia.


“Um horror absoluto”: governo francês reage

As imagens em direto chegaram também à esfera política. A ministra delegada para os Assuntos Digitais, Clara Chappaz, classificou o caso como “um horror absoluto”, acusando a plataforma Kick de ter permitido, durante meses, um verdadeiro “circo de violência pública”.

Já a Arcom, autoridade francesa de regulação audiovisual e digital, anunciou a abertura de inquérito. Também foi registada uma queixa na plataforma Pharos, serviço público destinado a denúncias de conteúdos ilegais na internet.


Entre o luto e a responsabilidade

Nas redes sociais, os próprios envolvidos tentaram reagir ao choque. “Meu irmão, meu companheiro… vamos sentir a tua falta”, escreveu “Naruto”. O advogado do jovem, entretanto, apressou-se a declarar que o cliente “não tem qualquer responsabilidade na morte” e que apresentará queixa por ciberassédio, alegando estar a ser alvo de ataques desde a divulgação do caso.

Mas tanto ele como “Safine” já eram investigados desde janeiro, após denúncias da imprensa francesa sobre o caráter abusivo dos conteúdos. Os crimes sob apuração incluem incitação pública ao ódio, violência contra pessoas vulneráveis e difusão de imagens de atos ilícitos.


O reflexo sombrio da era digital

A morte de Raphaël Graven expôs, de forma brutal, os limites — ou a ausência deles — das plataformas digitais. Para milhares de seguidores, a violência tornou-se entretenimento. Para Kick, um negócio lucrativo. Para Pormanove, custou a vida.

Ex-militar, habituado a disciplina e dureza, ele tornou-se paradoxalmente a figura frágil de um espetáculo em que o sofrimento era transmitido em tempo real, diante de uma audiência cúmplice pela passividade.

Agora, a França discute não apenas a responsabilidade legal dos agressores, mas também a urgência de regulação de plataformas que lucram com conteúdos de risco, sem mecanismos eficazes de proteção.


Um silêncio que ecoa além da tela

O corpo imóvel de Jean Pormanove, diante de câmaras que durante dias o tinham transformado em alvo, encerrou de forma brutal uma encenação que já não era entretenimento, mas degradação humana.

O silêncio transmitido ao vivo após 289 horas de violência contínua tornou-se símbolo de uma era em que a fronteira entre espetáculo e crueldade se dissolve — e onde a morte pode acontecer diante de milhares, sem que ninguém pare a tempo.

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